Caríssimos,
As mais afetuosas saudações. A carta que escrevo neste 23 de junho de 2024 contém o texto que motivou a criação do meu epistolário. Trata-se da tradução e da análise do poema de W. H. Auden, “The Shield of Achilles”. Como sabem, há pouco tempo dei a público no Instagram uma tradução minha deste poema como ornamento aos comentários que fiz acerca do canto XVIII da Ilíada, cujo assunto central é a magnífica écfrase do escudo de Aquiles. Nem análise e nem comentários sobre a tradução é possível fazer com certa profundidade naquela rede, dadas as limitações de espaço para textos mais longos, e, por isso, aqui estou eu escrevendo esta (longa) carta para fazê-los.
Antes, porém, comento brevemente sobre a minha relação com a poesia de Auden, poeta magistral que, em companhia de Ezra Pound e T. S. Eliot, figura como um dos mais brilhantes do século XX no que tange à poesia de língua inglesa. Sustento esta afirmação baseada na observação de sua técnica poética, no seu domínio dos recursos da língua, no seu estilo, seus temas e sua perfeita união entre conteúdo e forma. Na apreciação da poesia, são essas coisas que me interessam primeiro, e que me fazem admirar um poeta. Pois bem, conheci Auden na época da faculdade, quando cursava a disciplina de Literatura Inglesa III, nos idos de 2012. O primeiro poema que li do poeta foi o famoso “Funeral Blues”, de 1936, e o que experimentei na ocasião foi algo confuso, uma espécie de arrebatamento às avessas, fiquei down. Até aí, não haveria confusão, afinal, ficar down é ficar down, eu apenas me deixei abalar pela tristeza expressa pelo poema. No entanto, eu sentia um prazer estranho naquela tristeza, gostava de me sentir daquele jeito, e aquilo se renovava todas as vezes que relia o poema. Era a descoberta de um dos temas poéticos de minha predileção, esse sofrimento corrosivo, agitado, desesperado que não encontra solução em nada que está no mundo, porque o eu poético acaba de perder para sempre o seu objeto, ou então enxerga mais profundamente o vazio e a ilusão do mundo que, sem a graça divina, é o vale da morte eterna. Eu gosto imensamente dessa percepção que Auden, Pound, Eliot, e, na nossa língua, Fernando Pessoa têm.
Fiquei então obcecada por “Funeral Blues”, e as aulas de Literatura Inglesa III se esforçavam por me tirar aquele encanto com a professora falando apenas do exterior, de certo teor satírico do poema acerca da morte de um líder político. Qual líder político! Perguntava-me como era que versos como “I thought that love would last forever: I was wrong” pudesse falar de líderes políticos, e como o incômodo amargo que a luz do sol e das estrelas causavam no eu lírico, mergulhado em trevas por causa de uma perda amorosa, pudesse fazer sentido numa sátira política. A professora estava errada, e hoje ainda afirmo que ela estava! Impulsionada então por este poema, e pelo desafio de interpretações poéticas mais profundas, busquei ler mais poemas de Auden. Não o considero um de meus poetas favoritos, mas ele tem a capacidade de me deixa pasmada todas as vezes que leio “Lunar Beauty”, “Alone” ou “Lullaby”. Um dia posso comentar esses poemas com vocês, mas antes que eu perca o enfoque do assunto desta carta, interrompo meus devaneios acerca do poeta americano para apresentar-lhes a minha tradução de “The Shield of Achilles” (O Escudo de Aquiles), de forte teor político, mas que me chama a atenção muito mais pela magistral recuperação da tradição e pela inversão numa paródia tão mordaz. Sem mais delongas, eis o poema traduzido por mim:
Por sobre os ombros dele Ela buscava vinhedos e olivais, Cidades marmóreas, bem guiadas E navios a singrar mares brutais. Mas lá no metal rútilo, ao invés, As mãos dele puseram em conjunto Um deserto de artifício E um céu da cor de chumbo. Uma planície sem rosto, nua e parda, Seca e sem sinal de aldeamento, Sem nada p’ra comer e sem pousada Reuniu, mesmo em seu esvaziamento, Ininteligível ajuntamento. Milhões de olhos e coturnos perfilados, Sem expressão, esperando o sinal dado. Do ar uma voz sem cara A justiça da causa com dados provou, Tão monótona e seca como a própria área. Ninguém foi aclamado, nem argumentou. Numa nuvem de poeira então marchou Coluna por coluna, uma crença sustentando, Cuja lógica a todos, alhures, conduziu ao pranto. Por sobre os ombros dele Ela buscava ritos pios, Novilhas de guirlandas alviflóreas, Libações e sacrifícios. Mas lá no metal rútilo, ao invés, Onde um altar deveria ser presente, Ela viu pela centelha da forja Uma cena muito diferente. Numa área cercada de arame farpado Oficiais entediados faziam a sesta (uma piada disse um) E as sentinelas suavam sob o dia abafado. Uma turba de gente decente e comum Assistia de fora, sem fala ou movimento algum, A três figuras pálidas, levadas e amarradas A três estacas no chão cravadas. A massa e a majestade do mundo terreno, Tudo o que tem peso e pesa sempre igual Descansa em mãos alheias; eles eram pequenos, Contar não podiam com ajuda e dela não viram sinal. Com o prazer dos inimigos satisfeito, o seu mal Foi perder o brio, o pior que podiam querer, E faleceram como homens, antes mesmo do corpo morrer. Por sobre os ombros dele Ela buscava atletas a jogar, Homens e mulheres a dançar, Balançando os doces corpos Lépidos, lépidos sob a música. Mas lá no rútilo escudo não tinha A mão dele feito nenhum salão, E sim um campo de erva-daninha. Um moleque andrajoso sem eira nem beira vadiava ao léu; um passarinho Fugia de sua pedra certeira: Que meninas são violentadas e dois meninos cortem outro menino Eram axiomas p’ra ele, que jamais crescera ouvindo Falar de um mundo de promessas cumpridas Ou de quem chorasse por outras lágrimas caídas. O armeiro de lábios finos, Hefesto, saiu coxeando, E Tétis dos rútilos seios Deu um grito de espanto Com que o deus forjara Para aprazer o filho, o forte Matador Aquiles de férreo peito, Que tão logo encontraria a morte.
O episódio em que lemos a écfrase homérica do escudo de Aquiles está localizado entre os versos 474 e 617 do canto XVIII da Ilíada. Tétis, a mãe do Pelida, visita Hefesto para lhe pedir um novo conjunto de armas para o filho, que as perdera na ocasião em que Heitor matou Pátroclo e tomou-lhes as armas que eram suas. No episódio homérico, muitas coisas daquele mundo arcaico são forjadas no escudo de Aquiles, o céu, as estrelas, a vida no campo, a cidade em guerra, núpcias e danças, coisas entre as quais o filho de Peleu foi impelido a recusar para obter sua glória.
O poema de Auden, ao recuperar o episódio, também mostra Hefesto em seu processo criativo forjando as armas, com Tétis observando tudo “por sobre os ombros dele”. A guerra é o elo que une “O Escudo de Aquiles” ao canto XVIII da Ilíada, porém, diferentemente deste último, que revela no escudo parte do mundo homérico e os valores heroicos, o poema de Auden escancara o mundo moderno entregue à banalização do mal e submerso na futilidade da guerra. No poema de Auden não há heróis, o que pode parecer um paradoxo, tendo em vista que o escudo de Aquiles é um símbolo máximo do heroísmo. A releitura do poeta americano, no entanto, põe esse símbolo do avesso e o faz espelhar o anti-heroísmo, a passividade dos homens modernos, a desesperança, o mal como hábito, a morte e a destruição ambientados numa paisagem árida e inclemente. É a devastação da guerra.
É importante saber que “O Escudo de Aquiles” foi escrito em 1952, e publicado em 1955, numa coletânea de poemas homônima. Desse modo, fica evidente que W. H. Auden retrata o pós-guerra num período em que as democracias ocidentais lideradas pelos Estados Unidos e os países comunistas liderados pela União Soviética se enfrentavam na arriscada Guerra Fria. O poema é, portanto, uma ferina crítica à desumanidade e ao materialismo do mundo moderno, vazio de tudo e habituado com o mal. Ao estampá-lo no escudo através das mãos de Hefesto, o poeta horroriza Tétis com imagens totalmente contrárias à sua expectativa.
Na primeira estrofe, vemos a deusa olhando por cima dos ombros do deus ferreiro esperando ver a alegria da natureza, com suas vinhas e oliveiras, e a pujança de uma cidade forte e bem governada, com sua armada a atravessar os mares, mas em vez disso, Hefesto desenha um deserto artificial e um céu “da cor de chumbo”. Aqui temos o primeiro choque de Tétis: não há mais motivos para felicidade. O azul vívido e normal do céu foi substituído pela morbidez da cor cinzenta do chumbo e a condição humana agora é artificial e vazia como o deserto.
O deus continua a sua arte, completando, na segunda estrofe, a imagem que formara na primeira: uma vasta planície seca, informe, desprovida do necessário para a vida: comida, bebida e morada. Mesmo assim, no seu vazio tormentoso, vê-se um ajuntamento de soldados do qual não é possível destacar os indivíduos. O que há em comum entre a planície e a massa que lá se juntara é que ambas são informes e sem expressão. Não há consistência em nada. O ajuntamento de soldados apenas espera passivamente uma ordem, que é dada na terceira estrofe. Como tudo ali é vazio, a voz que surge sem rosto profere também um discurso vazio – e falaz –, trazendo dados ilusórios para provar a validade de uma causa qualquer. Aqui podemos depreender o efeito nocivo dos discursos político-ideológicos que conduzem as massas através de seus interesses escusos para um lugar inexistente sem nenhum esforço, uma vez que a sedução da voz e a aparente verdade as deixa sem ação ou capacidade de argumentar. As massas então seguem como ovelhas, porém, em seguida, tristemente se deparam com o sofrimento, a dor e a frustração da mentira.
Na quarta estrofe, depois da aflição causada pela condução dos destinos para uma ilusão dolorosa, Tétis esperava a representação de ritos religiosos, da piedade humana se voltando à divindade e oferecendo-lhe seus sacrifícios e suas guirlandas floridas, mas a humanidade, na sua crueza e brutalidade, em vez de novilhas, sacrificava seus semelhantes de forma humilhante: atados em estacas cravadas no chão, eram expostos ali até a morte perante os olhos de uma multidão inerte, passiva diante das mais cruéis atrocidades, porque não possui mais a capacidade de amar ou de distinguir o mal, como é apresentado na quinta estrofe.
Na sexta estrofe, como consequência da banalização do mal, o poeta nos fala da degradação humana no seu mais alto grau. Os homens carregados para serem atados nas estacas tinham perdido sua dignidade, seu amor-próprio, e desesperados, não contavam com nenhuma ajuda, de modo que já estavam mortos antes mesmo de morrer. Some-se a essa triste imagem, a menção perspicaz do poeta ao despotismo dos governos, “a majestade do mundo terreno”, que oprime até a última gota os “pequenos”.
A sétima estrofe volta a mostrar a expectativa de Tétis. Dessa vez, ela volta a depositar sua esperança na humanidade, e imagina ver na criação de Hefesto homens e mulheres dançando ao som da música, numa cena de alegria, leveza e união. Entretanto, no coração do homem não há mais espaço para o prazer inocente da convivência, porque a erva-daninha se alastrou, matou a plantação e tornou o solo infértil e corrompido, de modo que, na oitava estrofe, o que vemos é a completa falta de caridade, a entrega à lascívia, os crimes sendo normalizados numa evidência tão clara que chegam a se tornar axiomas. A criança, tão corrompida pelo mal, desconhece a fidelidade e não sabe que os homens podem se compadecer e chorar uns pelos outros em suas dores.
A última estrofe representa o fim do trabalho de Hefesto e a constatação esmagadora de Tétis sobre a certeza da morte do filho diante daquele mundo terrível. Os epítetos de Aquiles, que em Homero significam a sua grandeza heroica, aqui no poema de Auden reforçam ainda mais a crueldade dos homens num mundo sem sentido ou futuro. O matador de coração de ferro não é o homem homérico, corajoso e firme, mas o assassino de coração duro.
W. H. Auden, nesse poema, capta magistralmente o espírito do nosso tempo, o banimento de Deus, a paradoxal força dos discursos fracos e mentirosos em mentes influenciáveis, a impiedade, a banalização do mal, a inércia da gente “decente”, o despotismo dos chefes, a opressão do homem comum, a fraqueza de quem se vende e a troca dos valores pelo vazio completo do mundo.
O poema está estruturado em nove estrofes, sem métrica fixa. As estrofes estão agrupadas de três em três, sendo a primeira, a quarta, a sétima e a nona compostas de oito versos e as outras, de sete versos. As estrofes de oito versos possuem um esquema de rima alternado: o segundo verso rima com o quarto, e o sexto rima com o oitavo; as estrofes de sete versos seguem o esquema ABABBCC, que faz lembrar a rime royal medieval introduzida na poesia de língua inglesa por Geoffrey Chaucer para seu poema Parlement of Foules. Em minha tradução, mantive fielmente esse esquema, ainda que tenha precisado alterar a ordem de um verso ou outro, ou acrescentar alguma palavra para preservar a rima, como no sexto verso da primeira estrofe, “as mãos dele puseram em conjunto” para rimar com o oitavo, “e um céu da cor de chumbo”, quando no inglês se lê “His hands had put instead” e “And a sky like lead”, respectivamente. Desse modo, optei pelo verso livre, mantendo no português o esquema de rima presente no original inglês. Também mantive a repetição de estruturas da primeira, quarta, sétima e nona estrofes em português, o que pareceu funcionar muito bem.
Não traduzi o poema isolando-o da tradição em língua portuguesa. Busquei naturalmente outras traduções para me amparar em passos mais difíceis e para ver como o poema soava em português. Nesse sentido, a tradução de José Paulo Paes, publicada em 2013 na coletânea Poemas, da Companhia das Letras, foi a minha base. Ainda no intento de dialogar com a tradição, procurei também estabelecer um elo entre Auden e Homero através de uma ou outra escolha lexical. Por exemplo, “white flower-garlanded heifers” traduzi por “novilhas de guirlandas alviflóreas”, sendo o termo “alviflórea” uma liberdade tradutória em consonância com a proposta de tradutores da estirpe de um Odorico Mendes. Apesar de a linguagem do texto de partida seja mais próxima do registro coloquial, a imagem construída por Auden eleva o tom do verso, o que justifica o uso de um termo mais ornamentado. Além disso, também propicia uma economia de preposições no português.
Outra preocupação que tive foi em manter certa correspondência no tamanho dos versos, muito mais por um aspecto visual do que qualquer outra coisa. As estrofes de oito versos possuem-nos mais curtos do que as de sete. Na comparação com o inglês, o português é mais analítico, utiliza-se, em geral, de mais elementos tanto no vocábulo como na frase. Um verso como “that girls are raped, that two boys knife a third”, com dez palavras em inglês, foi traduzido como “que meninas são violentadas e dois meninos cortem outro menino”, também com dez palavras, mas muito maior. Não há como competir com um verso em que todas as palavras são monossílabas no original! Eis uma entre tantas dificuldades de traduzir poesia! A solução de José Paulo Paes, mais simples, segue a letra: “e que dois meninos esfaquearam um terceiro” funcionou em sua tradução através de um rearranjo de versos. No meu caso, tendo optado por manter a ordem dos versos, eu precisava achar a correspondência da rima “bird - third” em português, o que fiz com uma rima toante “passarinho - menino”. Esse verso foi o mais difícil de traduzir, e ainda lateja no seu excesso, mas com paciência hei de limá-lo, pois essa versão da tradução não é definitiva.
No mais, o poema segue razoavelmente a letra, e o sentido se mantém em sua inteireza. Evitei alterações ou adaptações que, embora mantivessem o sentido, se afastariam muito das escolhas lexicais do texto de partida. Entre outras coisas, traduzir consiste na difícil tarefa de encontrar o ponto de equilíbrio entre a secular disputa “letra versus sentido”, não traindo nem aquela nem este, mas diligenciando as tentativas, as possiblidades e as impossibilidades num hercúleo trabalho de caridade: fazer o leitor apreciar em seu idioma o que o tradutor consegue apreciar no original.
Por fim, espero sinceramente que vocês apreciem a tradução do poema e estes comentários. Despeço-me aqui, prometendo a carta IV, que será sobre um “pequeno grande” livrinho muito especial.
Os mais ternos desvelos da professora,
Vanessa Almeida.
Incrível!